25.1.08

A historia de Ryan B. Patrick (parte 1)

Eu trabalho em um restaurante em Venice Beach, em Los Angeles. Aqui eu sirvo mesas. Todo santo dia em que estou trabalhando na praia, vejo dois garotinhos que passam o dia vendendo balinhas na praia.
Os dois sao muito gente boas. Usam toda a maladragem digna de quem passa mais tempo na rua do que em casa para venderem seus doces. Eh quase uma maladragem carioca. Chegam rindo, falando alto, nos fazendo rir e quando vimos ja compramos um saquinho de Skittles. E ai de vc se negar comprar as balinhas! Eles te vaiam mesmo... e todo mundo, num raio de 50 metros compra alguma coisa deles com medo de serem vaiados tb!
Mas as risadas nem sempre estao estampadas em seus rostos. Afinal, quantos de nos sabemos o que eh ter oito anos de idade e acordar as 7 da manha, andar kilometros por dia, subindo e descendo o calcadao da praia de baixo de um sol forte e parmanecer assim fazendo mesmo apos o sol se por e o frio desmedido tomar conta da beira da praia, ate o ultimo doce ser vendido.
As personalidades desses dois meninos sao bem diferentes. Eles sao primos e tem a mesma idade. Oito anos. Um eh magrinho e outro gordinho. Formam uma verdadeira dupla.
Na ultima sexta feira eu estava no restaurante e ja nos preparavamos para fechar as portas, pois o frio era tao grande que ninguem se atrevia a ir jantar a beira do mar a noite. Por volta das 9h da noite, Ryan, o magrinho, entrou no restaurante com sua bandeijinha ainda cheia de doces e me pediu para ajuda-lo comprando um.
Minha cabeca, as vezes, demora um pouco para entender determinadas coisas. Como seria possivel que ele ainda estivesse ali vendendo aquelas balas, no frio, aquela hora da noite, em um dos lugares que ja foi considerado o mais perigoso de Los Angeles?!?
Demorei a acreditar porque nunca imaginei me deparar com essa cena aqui nos EUA. No Brasil, ela ja se tornou tao comum que nem mais nos afeta. Simplesmente nao afeta. Nao parece verdade, ou nao nos atinge, pois eh comum.
Mas aqui? Era muito estranho para ser verdade.
Comecamos entao a conversar. Dei uma limonada para ele e sentamos para conversar. Ele nao parecia ter muitos amigos, uma vez que passava o dia trabalhando e nao brincando.
Eu perguntei pq ele nao ia para casa ja que era tarde demais para uma crianca de oito anos estar andando pelas ruas desacompanhado. Ele me disse que nao poderia enquanto nao terminasse de vender tudo.
"Mas vc nao acha que sera meio dificil a essa hora da noite? Nao ha mais ninguem na praia!". Eu disse.
"Mas meu pai falou que so vai abrir a porta de casa para eu ir dormir se a caixa estiver vazia. E eu ainda tenho 22 pacotes de balinhas para vender."
"Que absurdo" Disse eu, ja pensando em enfiar a porrada no pai dele. "Ele nao pode fazer isso. Va para casa e termine de vender esses amanha. Nao eh culpa sua que tenha chovido hoje a tarde, que o tempo esteja frio e que tenha anoitecido as 4h30 da tarde!"
"Nao posso". Respondeu seco.
"Por que?" Perguntei querendo arrancar dele a resposta sincera/.
"Porque nao posso" Respondeu como quem nao pode falar o motivo.
Olhei bem no fundo do olho dele. Crianca nao sabe mentir. Aquele menininho negro, de olhos espertos, mas tristes, bonito, mas completamente abatido pelo excesso de trabalho, nao coseguia me esconder a verdade. Ou nao queria.
"Nao posso pq meu pai me bate se eu nao vender tudo!"
"Como assim, te bate? Ele te bota para trabalhar e te bate se vc nao vender!?!?! Isso nao ta certo." Eu estava perplexo com aquilo. Alguma coisa nao estava certa. Isso acontecer na casa do Tio Sam!? Isso eh digno das praias do Rio, ou dos sinais de transito de qualquer esquina do Brasil. Nao daqui.
A resposta dele foi uma das coisas que mais me abalou na vida.
Com olhos cheios de lagrimas e com a cara de quem sabe que esta sendo injusticado ele disse:
"Poxa, Luiz, se vc acha mesmo que isso eh errado, me ajuda." Com aquela carinha de quem quer, mas nao sabe como pedir ajuda. Desviando o olhar e com vergonha de falar. Ele completou: "quando vc estiver de folga e eu passar por aqui, me segue que eu te levo ate meu pai e vc pode falar para ele parar de fazer isso comigo!"
Meu Deus. Que noh na minha garganta. Eu nao posso fazer isso. Sei que deveria, mas nao posso. Poderia ate dizer que eu nao tenho nada a ver com isso, mas dormir todas as noites sabendo que aquele garotinho que me faz rir toda segunda-feira-de-mal-humor esta sendo espancado, nao da!
De repende me deu uma angustia! Uma revolta! E a certeza de que eu sou impotente. Vou avisar a policia. Isso vou. Mas o que vai acontecer com ele? Nao sei. O que vai acontecer comigo? Nao sei. O que eh correto fazer? O que eh justo? Nao sei. Mas nos ultimos dias uma vontade insana de fazer o bem veio tomando conta de mim. Preciso fazer o bem. Preciso me dedicar a isso, por um tempo, pq isso nao eh so para ajudar os outros. Eh para me ajudar. Vou tentar curar minha angustia e tentar vencer minha tristeza de fim de ano.
Como essa historia vai acabar, depois eu conto. Mando um outro e-mail para contar-les o final (ou o inicio) da historia de Ryan B. Patrick, 8 anos, americano, negro, trabalhador e muito simpatico.