25.1.08

A historia de Amon, o afegao

Bom, mas hoje eu queria dividir mais uma historia com vcs. Essa historia tem fim.

Hoje fui ao jantar de confraternizacao do escritorio em que a Lais trabalha.
Estavam reunidos grande parte dos funcionarios do Olympic Collection, um Buffet de festas da alta sociedade californiana. A festa estava animada e a diversidade cultural presente no salao de festas fazia o ambiente parecer mais uma feira internacional do que um confraternizacao de fim de ano. Dentre as nacionalidades ali representadas estavam Franca, Brasil, Iran, Afeganistao, Mexico, Honduras, Rep. Dominicana, Guatemala, El Salvador, Filipinas, Espanha, Estados Unidos, Israel.
A historia de hoje eh um curto trecho da vida de Amon. Um manobrista de 62 anos, nascido e criado no Afeganistao.
Amon eh um senhor simpatico e sempre cheio de piadas. Todas as vezes que passo por ele no estacionamento do Olympic sou recebido com uma chuva piadinhas, principalmente em referencia a Lais: "Veio buscar a chefe? Como eh essa vida de motorista?". Coisas desse tipo. Mas as brincadeiras de Amon nao se parecem com aquelas tipicas dos porteiros brasileiros. Ele nao utiliza nenhum pronome de tratamento para se dirigir a mim e seus gestos e palavras sao, surpreendentemente, elegantes. Digamos que o Sr. Amon tem classe.
Hoje estavamos sentados a mesa, durante a confraternizacao, eu, Lais, tres filipinas, uma iraniana e Amon, representando uma terra que muitos nao conhecem e outros so ouviram falar no pos-Bin Laden. A minha esquerda estava Lais e a minha direita, Amon. Logo comecamos o nosso papo que, entre tacas de vinho tinto, tornou-se uma aula de historia, de vida, de drama, de superacao e de conformacao.
Luiz: "E ai Amon? A quanto tempo vc esta aqui nos EUA?"
Amon: "Ha 29 anos!" Respondeu com uma voz repleta de nostalgia e de algum outro sentimento que eu nao conhecia antes, mas que identifiquei na sua resposta.
"Vc sem importa se eu perguntar o motivo da sua vinda?" perguntei, certo de que pela frente viria uma historia dessas de surpreender.
"O ano era 1979. Ate ai o Afeganistao era uma terra boa. Uma nacao. Eramos desenvolvidos dentro da nossa cultura. Tinhamos dinheiro, luxo, trabalho, profissoes, vidas sociais, mas tb tinhamos os nossos problemas, como qualquer outro pais do mundo. Eu era um Juiz Criminal na capital federal, Cabul. Me formei em Direito ainda novo e logo me tornei juiz. Tudo era como tinha que ser. Normal."
"Mas ai chegou o ano de 1979 e com ele, os comunistas. O Afeganistao foi invadido pela Uniao Sovietica. Nessa invasao nao houve respeito a cultura nem a vida. Homens, mulheres, criancas, velhos. Todos eram apenas Afegaos ao olhar comunista. Nao eram ninguem para os sovieticos. Nesse momento, a minha influencia ajudou. Alguns amigos que haviam se formado comigo na Faculdade de Direito de Cabul e que pertenciam ao Partido Comunista Afegao me avisaram para deixar o pais. Com o apoio deles, deixei para tras a minha vida. E comigo so levei a roupa do corpo, uma mulher gravida e dois filhos pequenos. Eu tinha 34 anos.
A ideia era vir para os EUA encontrar com meu irmao, que era engenheiro aqui a 21 anos. Mal tive tempo de informa-lo que estava vindo. Primeiro precisei fugir do Afeganistao para depois me preocupar com isso. Foi passando pelo Paquistao que pude ligar e avisar. Eu nao tinha dinheiro para mais nada que nao fossem as passagens para os EUA."
"Pouco tempo depois eu estava aqui, na terra da oportunidade, com a roupa do corpo, sem dinheiro, com uma mulher gravida e dois filhos pequenos. Eu nao fui o unico a fugir. Eramos milhoes fugindo dos comunistas. Tres milhoes foram para o Iran. Dois milhoes e meio para o Paquistao e outros inumeros que se dispersaram pelo mundo. Meu sonho era encontrar meu irmao e ganhar tempo para reestabilizar a vida na America. Sem dinheiro e lugar para morar, minha unica esperanca era meu irmao, que poderia me ajudar. Encontrei-o. Eu nao falava uma palavra de ingles. Precisaria estudar antes de comecar a trabalhar, mas sem trabalho eu nao podia sustentar minha familia. Meu irmao era a unica pessoa em que eu podia contar. Mas duas semanas apos eu chegar nos EUA, meu irmao morreu. Nesse momento a minha vida foi destruida."
"Agora eu nao teria mais tempo para estudar. Eu nao tinha mais quem me desse suporte enquanto estudava. Eu nao tinha mais aonde morar. Nao havia mais irmao e com ele se foi o dinheiro, a casa, a oportunidade, o sonho. Tive que arrumar o primeiro emprego que eu pudesse, pois nao havia mais o que comer, da noite para o dia. A primeira oportunidade foi a de manobrista. O salario era de US$200 por mes e com esse dinheiro eu deveria achar um lugar para morar com a minha familia, alimentar 4 bocas, sendo uma gravida e ainda teria que pagar pelo nascimento da minha filha em um pais onde nao existe sistema publico gratuito de saude. Mas se era a unica opcao, teria que ser ela."
"Trabalhei 20 horas por dia para comprar, depois de anos, uma casa a quase 90Km do centro de Los Angeles. Trabalhei incansavelmente para sustentar minha familia. Tudo isso, pq tive que sair fugido do meu pais. Pq tive que deixar para tras o lugar que me deu uma vida, status, dinheiro, respeito. Perdi tudo. Hoje, 29 anos depois que minha vida foi destruida eu tenho uma certeza: a de que meus filhos nao passarao pelo que passei. Todos sao formados e meus netos sao pequenos genios. O mais velho, de 9 anos, sabe mais de computador do que qualquer umm Eh um genio."

Eu fiquei impressionado com a historia de Amon. Estava explicado de onde vinha tanta educacao, tanta classe. Todos os dias eu passo por um juiz e entrego as chaves do carro para ele estacionar.
Fomos interrompidos pelo sorteio das rifas, durante a confraternizacao. Nesse momento, nos empolgamos como duas criancas, torcendo para sermos sorteados e faturarmos o premio que chegava a US$100. Nao foi a nossa noite. A mesa dos mexicanos faturou todas! Ate brincamos que a "mafia" deles tava parecendo ser mais poderosa que a dos judeus (esses sabem fazer dinhiero como ninguem, entao muitos duvidam dessa capacidade e preferem levantar suspeitas).
Quando o tumulto diminuiu, voltamos a conversar e eu estava cada vez mais interessado nas historias daquele lugar em que eu tantas vezes nao compreendi e , portanto, julguei errado.

Durante a aula de historia que Amon, o Juiz Manobrista, me concedeu, entendi muito deste pais e dessa cultura que foi destruida pelos acontecimentos do mundo.
Em 1979, o povo afegao fugiu como louco para todos os cantos do mundo. Mas o primeiro passo de fugir de um pais eh entrar no vizinho. Metade dos refugiados foram para o Iran e outra metade para o Paquistao.
Agora pensem se o povo Argentino se sente ameacado pelo governo de Christina Kirchner e simplesmente dois milhoes e meio de argentinos comecam a correr para o Brasil. Vc deixaria entrar? O governo paquistanes impos uma condicao para a entrada dos refugiados: que os homens adultos e filhos mais velhos fossem lutar na conquista da Cashmira (regiao em disputa entre Pakistao e India). Os filhos mais novos deveriam estudar em escolas especiais de ensino Islamico. Mas o principio dessas escolas nao era estudar e sim criar mais soldados para a guerra da Cashmira. Ali, esses alunos receberam treinamento militar e religioso. Foi feito uma lavagem cerebral para transformarem essas criancas em soldados crueis. Imaginem o exercito perfeito: lutariam com paixao, mas nao eram cidadoes do seu pais. Seria como entrarmos em guerra com a bolivia e botarmos os argentinos na frente de batalha. Mas para convencer uma pessoa de outro pais a lutar pelo seu pais, eh preciso transpor as barreiras fronteirissas. Eh preciso encontrar o ponto comum: a religiao. O extremismo religioso foi implantado na educacao dessas milhares de criancas com o objetivo de criar soldados. E eles foram criados.
Com a queda da Uniao Sovietica, os afegaos que outrora haviam se refugiado, resolveram retornar para o seu pais, mas com eles trouxeram o extremismo religioso que receberam no Pakistao. Assim, esses filhos de refugiados que receberam educacao extremista, ficaram conhecidos como Talibans ( que na lingua arabe significa "estudantes religiosos"). O povo afegao estava fadado a mais um periodo de terror.
As cidades foram destruidas, o sistema educacional virou uma meca de extremistas, o pais virou um grande campo de exterminio.
Nao eh culpa dos Afegaos. Nao eh culpa do Islamismo.
A culpa eh do ser humano.

Depois de um bom tempo de conversa, Amon se levantou e disse: "Com licenca. Preciso ir."
Pos a mao esquerda sobre meu ombro e com a direito segurou a mao da Lais e nos entregou um sorriso de avo. Se virou e saiu pela porta lateral, sozinho.
Naquele momento olhei em seu rosto como se tentando decifrar o que estava passando por sua cabeca. Poderia estar pensando em sua vida antes, nos problemas que enfrentou aqui, em seu pais ou em seu povo. Mas o que vi foi um homem conformado indo embora. Sua expressao era solitaria. De um homem sem nacao e sem povo. Sofrido, mas conformado com a vida que teve.
Amanha eh dia de entregar a chave novamente para o Juiz.

Luiz Dutra
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Curiosidades:

1) "76% do povo Afegao apoiava os EUA antes da invasao comunista. A inacao norte americana aliada ao nitido interesse dos americanos em utilizar o afeganistao como ponto de escoamento de gas e petroleo da regiao para a China e outros paises que mantem relacoes/interesses com os EUA e tb pela sua propria reserva de minerais preciosos do pais fizeram o povo afegao odiar os EUA 110% nos dias atuais. Os americanos dizem que lutam pelos direitos humanos e pela liberdade de inumeros paises, mas quando precisamos eles nao vieram. So quando o interesse surgiu." (Amon)
2) O livro " O cacador de pipas" retrata um pouco dessa historia. Recomendo a todos que leiam o livro antes de ver o filme, pois esse eh muito resumido perto dos detalhes do livro e serve, basicamente, para ajudar a vizualisar essa terra e suas tradicoes de uma forma muito mais dinamica. Mas quem ainda nao leu tb vai apreciar muito o filme. Nao perca a oportunidade de entender e conhecer um pouco mais um pais que foi massacrado desde Alexandre, O Grande.