CONTROLE SOCIAL DA INFLAÇÃO: IDÉIAS ECONÔMICAS DO SENADOR MERCADANTE - Paulo Moura
Relembrar o debate econômico ocorrido dentro do PT na antevéspera da eleição presidencial de 1994 é um exercício necessário nesse momento em que Lula ameaça o Brasil com a possibilidade de nomear o senador Mercadante para o lugar do ministro Palocci. Na época, os proponentes das idéias que deveriam fornecer as diretrizes estratégicas do discurso do candidato do PT nas eleições daquele ano e num eventual governo Lula dividiam-se em dois campos.
Por um lado, encontravam-se aqueles que defendiam teses baseadas numa proposta do economista Paul Singer, cujo eixo passava pelo estabelecimento de mecanismos de negociação de preços, salários e tributos, ao longo da cadeia produtiva. Incorporando conceitos de democracia participativa e a idéia de controle social do mercado, esta tese entendia ser possível, através de câmaras setoriais e da criação de um “foro nacional de negociação” com entidades da sociedade civil, empresariais e de trabalhadores, além do Congresso Nacional, implantar um processo gradualista de combate à inflação através de pactos políticos.
Este tipo de concepção era bem aceito por um grupo grande de economistas do PT. Propostas nessa direção, anteriores à campanha eleitoral de 1994, já haviam sido apresentadas, em 1992, às instâncias partidárias, por um grupo coordenado pelo, hoje senador e candidato a ministro da Fazenda, Aloizio Mercadante. Transformada em questão polêmica nos debates que antecederam o 8º Encontro Nacional do PT (1993), esta concepção teve sua viabilidade questionada por economistas como César Benjamin, Odilon Guedes e Sérgio Amadeu.
Em 24 de junho de 1994, o debate em torno das câmaras setoriais foi retomado e o 9º Encontro Nacional do PT aprovou teses reconhecendo as câmaras setoriais como instrumentos importantes para a democratização da vida econômica do país. As câmaras setoriais, no entanto, eram vistas apenas como instrumentos complementares em se tratando da implementação de uma política de estabilização econômica, por diversas razões, especialmente pela dificuldade em generalizá-las como minimamente representativas e capazes de efetivar o combate à inflação em âmbito nacional. Com exceção de Paul Singer e Guido Mantega, mesmo os economistas alinhados com a tese do controle social entendiam que não seria possível sustentar uma política de combate à inflação tendo como eixo exclusivamente às câmaras setoriais.
A outra proposta, criticada no debate interno do PT como sendo monetarista, tinha como bases idéias formuladas pelo economista Paulo Nogueira Batista Jr., que defendia a necessidade de o PT formular uma alternativa à idéia da dolarização, muito influente entre os economistas do governo, em torno da qual orientava-se boa parte das políticas de estabilização econômica implementadas em economias emergentes à época.
As idéias aí apresentadas foram reformuladas e complementadas, dando origem a um documento elaborado por economistas de São Paulo e Rio de Janeiro (André Urani, Eduardo Suplicy, João Machado, Luiz Carlos Merege, Mário Carvalho, Odilon Guedes, Paulo Guilherme Corrêa, Paulo Nogueira Batista Jr.), intitulado “Estabilização com crescimento e Distribuição de Renda” e apresentado à direção nacional do partido em 26 de junho de 1994. O eixo central desse documento baseava-se na defesa da necessidade de um ataque frontal à inflação, articulada a partir de iniciativas nas áreas fiscal, monetária, cambial e política de rendas.
O consenso tornou-se impossível entre os dois grupos de economistas e não houve tempo de conciliá-los, nas circunstâncias impostas pela dinâmica da campanha eleitoral, e num contexto em que não existia debate sistemático no partido em torno das questões econômicas. O candidato do PT partiu desarmado para enfrentar o debate central em torno do único tema relevante para a campanha eleitoral de 1994: o Plano Real.
Lula, portanto, partiu para uma campanha eleitoral em que a imensa maioria da população via na inflação o principal problema do país, e para o enfrentamento de um candidato que era ministro da Fazenda e patrocinador de um Plano de Estabilização Econômica baseado em princípios técnicos de inspiração liberal e que já havia dado certo noutros países (sob o ponto de vista de derrubar a inflação); armado com uma estratégia que tinha como orientação central, a tentativa de evitar esse debate. Isto é, a linha estratégica de Lula visava tentar “evitar adotar a agenda eleitoral do adversário”, que, coincidentemente, era a preocupação central da “agenda eleitoral” da maioria esmagadora da população.
Conforme constatou o economista João Machado, “para que a idéia de secundarizar o debate da inflação prevalecesse nas instâncias dirigentes da campanha, contudo, contribuíram de forma decisiva os graves erros de análise do significado do Plano Real, e do seu impacto provável, cometidos neste momento por alguns dos principais economistas do partido”.
Existindo dentro do PT avaliações do Plano Real e de seu provável impacto eleitoral (efeito psicológico da comparação entre a moeda velha e a nova e aumento do poder aquisitivo da população); experiências internacionais bem sucedidas de implantação de planos de estabilização econômica similares ao Plano Real, além de propostas alternativas de política econômica para a candidatura e o eventual governo Lula, elas foram secundarizadas, e prevaleceram as avaliações incorretas de economistas mais próximos de Lula e de seu grupo dentro do partido, como Paulo Singer, Aloizio Mercadante, Maria da Conceição Tavares e Guido Mantega.
Esse grupo de economistas caracterizava o Plano Real como recessivo, afirmavam que a inflação cairia, mas voltaria a crescer rapidamente; que o mecanismo da URV não funcionaria; que não haveria recuperação do poder de compra dos salários da população de baixa renda; que não haveria aumento da demanda e conseqüentemente da produção, ao contrário, que haveria recessão.
Sem ter definido claramente sua posição sobre este componente estratégico central para o debate e para a definição dos rumos da campanha eleitoral, desnorteada frente às avaliações absolutamente divergentes dos dois grupos de economistas que deveriam fornecer-lhe a principal munição eleitoral, e premida por acontecimentos conjunturais da eleição em pleno curso (episódio da denúncia contra o vice Bisol), a coordenação da campanha de Lula terminou orientando-se justamente pela avaliação errada, supondo que o quadro recessivo e as perdas salariais da população eram iminentes, e que a população perceberia isso, ainda em tempo de afetar os resultados da eleição.
Surpreendido pelos fatos, Lula assistiu suas críticas ao Plano Real serem desmentidas pela realidade, semeando nos seus eleitores uma confusão maior do que aquela em que os economistas do PT deixaram-no como candidato.
Mais importante do que os erros de avaliação econômica do partido com relação ao Plano Real e seu impacto eleitoral, está o erro político de sua direção que, descolada da realidade da economia mundial, do País e da maioria da população, e na aparente suposição de com “Lula lá”, a inflação seria automaticamente domada, não estabeleceram prioridade ao debate econômico e à compreensão do Plano Real, que os eleitores terminaram por impor com único tema do debate nas eleições presidenciais de 1994.
Para vencer em 2002, Lula precisou ignorar as idéias econômicas de seus assessores. Para governar, Lula precisou deixar os economistas do PT bem longe das decisões centrais do governo sobre diretrizes para a economia. Tornaram-se, todos, figuras decorativas. É bem possível que eles não pensem mais como pensavam, ou que não tenha coragem de assumir o que pensam em público. Alguns, talvez, preferiram perseguir votos a ter de reconhecer a lógica implacável da economia de mercado. Botar gente com essas idéias no ministério da Fazenda agora, ainda que seja só para posarem de bonecos de ventríloquo de quem realmente entende de economia, é brincar com fogo. E, pasmem senhoras e senhores, Lula brincou com fogo. E descobriu que está, bem mais do que gostaria, preso ao imperativo de manter Palocci no cargo.
* Paulo Moura, cientista político